O Brasil é líder no número de processos trabalhistas do mundo. Em 2016, foram mais de 3 milhões de novas ações. A judicialização reflete uma legislação rígida e uma tradição que incentiva o empregado a tentar a sorte contra o empregador na Justiça. O país também é conhecido pelo farto número de sindicatos. No ano passado, havia mais de 16.500 entidades, com rendimento anual total de 3,5 bilhões de reais [1,09 bilhões de dólares]. Além disso, o custo de criar um posto de trabalho no Brasil supera o registrado nos países mais ricos do mundo e em outras nações grandes e em desenvolvimento. Nesse cenário, o governo propôs e o Congresso Nacional aprovou uma reforma trabalhista, que começa a valer a partir de novembro. Os argumentos principais são modernizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943, e facilitar a criação de empregos no atual cenário de crise.
A reforma tem como principal pilar a possibilidade de que o negociado entre empregador e empregado prevaleça sobre a lei – resguardados os direitos constitucionais, como salário mínimo, férias e direito de greve. As novas regras também preveem, entre outros pontos, o fim da contribuição sindical obrigatória e jornadas de trabalho mais flexíveis.
A Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 não concebia relações de trabalho já comuns no país, como o trabalho de casa (home office), o trabalho intermitente (por dia ou hora de serviço) e jornadas de até 12 horas por dia, no limite de 48 horas por semana, comum em empresas de vigilância e hospitais. Agora, a reforma trabalhista regulamentou essas práticas. Também permite o parcelamento de férias em até três períodos (antes eram dois) e a possibilidade de demissão negociada. “A reforma toca em questões pontuais, mas extremamente necessárias. Não subtrai direitos, garantidos pelo Artigo 7º da Constituição, e dá mais autonomia a empregadores e empregados”, diz à revista Época Paulo Paiva, ex-ministro do Trabalho e professor da Fundação Dom Cabral. “Quem diz que retira direitos, não sabe responder quais são. O que a reforma faz é dar a oportunidade de negociar como os direitos serão aplicados. É uma zona de ganho de ambos os lados”, avalia também para Época Hélio Zylberstajn, professor da Universidade de São Paulo (USP).
No entanto, ao mesmo tempo em que as mudanças fortaleceram os acordos coletivos, em detrimento da legislação, elas não garantiram uma melhor representatividade por parte dos sindicatos. Para alguns analistas, o fim da contribuição sindical obrigatória – correspondente a um dia de trabalho por ano – deveria vir acompanhado de uma reforma sindical, com medidas como o fim da unicidade, ou seja, a proibição de existência de mais de um sindicato por categoria, empresa ou território, o que veta a competição. “Sem uma reforma sindical séria, que permita que o trabalhador possa escolher a entidade que vai representá-lo, o risco é de aumento da desigualdade salarial”, afirma Sergio Firpo, professor da escola de negócios Insper e especialista em relações de trabalho.
Outro ponto controverso da reforma é a regulamentação do trabalho por jornada ou horas de trabalho, o chamado trabalho intermitente, comum entre funcionários de bares e restaurantes. Nessa prática, o empregado tem jornadas irregulares e recebe de acordo com quanto trabalha. A principal crítica a essa regulamentação é que coloca os assalariados à mercê das oscilações diárias das necessidades dos empregadores. Segundo os apoiadores, no entanto, a reforma tem salvaguardas, como o recebimento pelas horas ou diária, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), Previdência e 13º salários proporcionais. No contrato, o valor da hora de trabalho não pode ser menor que uma hora de salário mínimo e o empregado deve ser convocado com pelo menos cinco dias de antecedência.
Quanto à terceirização, ela passou a ser permitida para qualquer atividade. Contudo, há duas salvaguardas. A primeira é que um trabalhador com carteira assinada (o que lhe garante os direitos trabalhistas) não pode ser demitido e voltar a trabalhar na mesma empresa como terceirizado – empregado por outra companhia – nem como pessoa jurídica (diretamente) num prazo de 18 meses.
Federações empresariais, como a Fecomercio (Federação de Comércio de Bens e Serviços) e a Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo) comemoram as medidas, defendidas como modernizadoras e economicamente estimulantes. “Temos viajado muito mundo afora e é impressionante o ‘gap’ do Brasil em relação ao resto do mundo em termos de relações de trabalho”, afirma a diretora executiva e jurídica da Fiesp, Luciana Freire. “Teremos uma modernização da legislação trabalhista que esperamos há anos. Estamos satisfeitos”, diz. Para o presidente da Fecomercio, Abram Szajman, a reforma trabalhista vai permitir o aumento do número de empregos formais e da produtividade: “Novas perspectivas serão abertas, gerando maior diálogo e flexibilização entre o patrão e os seus colaboradores”. E acrescenta: “Isso cria um ambiente favorável à retomada dos investimentos”.
Opositores da reforma trabalhista acusam-na de precarizar as relações trabalhistas, justo em meio à uma grave crise econômica. Para o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Granz Lúcio, ouvido pela revista Carta Capital, a reforma “vai transformar parte do que hoje é precário e ilegal em precário formal. O trabalho intermitente, a jornada parcial, formas de contratação precárias passarão a ser legais. Parte da proteção de hoje deixa de existir, então a empresa deixa de ter aquele custo”. Assim, segundo Granz Lúcio, “a reforma do governo promove a produtividade espúria, alcançada pela superexploração do trabalho, pela piora nas condições ou pelo arrocho salarial”. E critica: “Isso acarreta para o funcionário problemas de saúde, segurança e produtividade”. Marcelo Paixão, economista e sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diz que “a ampliação da zona do contrato temporário que cria a figura do trabalhador autônomo com vínculos empregatícios, junto com a lei da terceirização, sinaliza a uberização, o modelo uber do trabalho no mundo”. E continua: “Trabalha uma quantidade de horas e ganha pela hora. Se tiver doença ou outra coisa, problema seu”.
Igreja. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) faz parte do grupo de entidades que critica fortemente a reforma trabalhista. A CNBB afirma que o texto da reforma trabalhista está “crivado de inconstitucionalidades” e representa “grave retrocesso social”. Um dos pontos criticados é o seu eixo central, que faz com que o negociado prevaleça sobre o legislado, dando força para as negociações coletivas.
Dom Sérgio da Rocha, presidente da CNBB, acrescenta que a reforma trabalhista “privilegia o capital em detrimento dos avanços sociais”. “Tais mudanças apontam para o caminho da exclusão social e do desrespeito aos direitos conquistados com muita luta pelos trabalhadores e trabalhadoras”, critica. Da Rocha reclama ainda a falta de espaço para que a sociedade se manifestasse sobre as mudanças. “Tenho dito que não basta negociação política, era preciso mais diálogo e talvez menos pressa na aprovação da reforma porque ela dizia respeito ao conjunto da população, ela mexia com a vida do povo e precisava ser muito bem pensada, por mais urgência que poderia ter”.
Por fim, para dom Roberto Ferreira, que preside a Pastoral Política Católica e a Pastoral da Cidadania de Campos (no estado do Rio de Janeiro), agora “é preciso minimizar os danos” da reforma trabalhista. E isso passa por reforçar os sindicatos para a defesa da democracia e dos direitos dos trabalhadores. “A CNBB está preocupada com os pobres, que podem ficar cada vez mais excluídos. Não podemos deixá-los sozinhos neste momento”, conclui.