A grave crise ética pela qual o Brasil passa levou o episcopado, que no início de maio estava reunido em Assembleia Geral em Aparecida, São Paulo, a emitir uma dura nota oficial. Trata-se de um balanço diante dos escândalos sem precedentes dos últimos meses, em especial marcados pelos depoimentos prestados à Justiça por 77 executivos da Odebrecht, maior empreiteira do país, e da forma como o Estado passou a ser usado para corromper pessoas. Nas entrelinhas do texto, a mensagem tem endereço certo: o governo, os políticos e a iniciativa privada.
Assinado pelo cardeal Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por dom Murilo Krieger, arcebispo de Salvador (Bahia) e vice-presidente da CNBB, e por dom Luciano Steiner, bispo-auxiliar de Brasília e secretário-geral da CNBB, o texto afirma que “o desprezo da ética leva a uma relação promíscua entre interesses públicos e privados, razão primeira dos escândalos da corrupção” e cobra urgência na retomada da ética como condição indispensável para que o Brasil reconstrua seu tecido social. Apenas dessa forma, analisa a entidade, a sociedade terá condições de lutar contra seus males mais evidentes: “violência contra a pessoa e a vida, contra a família, tráfico de drogas e outros negócios ilícitos, excessos no uso da força policial, corrupção, sonegação fiscal, malversação dos bens públicos, abuso do poder econômico e político, poder discricionário dos meios de comunicação social, crimes ambientais”.
A reflexão feita pela CNBB cita a delicada conjuntura política, econômica e social do Brasil. Mesmo reconhecendo que não compete à Igreja apresentar soluções técnicas aos graves problemas, o documento descreve o que acontece hoje no Brasil: “Um país perplexo diante de agentes públicos e privados que abrem mão dos princípios morais, base indispensável de uma nação que se queira justa e fraterna”. A Conferência afirma que para enfrentar esse cenário é preciso abandonar a prática do “toma lá dá cá” como moeda de troca para atender a interesses particulares com prejuízo dos interesses públicos.
A CNBB assevera ainda que “o Estado democrático de direito, reconquistado com intensa participação popular após o regime de exceção, corre riscos na medida em que crescem o descrédito e o desencanto com a política e com os poderes da República, cuja prática tem demonstrado enorme distanciamento das aspirações de grande parte da população”. E faz um alerta importante: “Desconsiderar os partidos e desinteressar-se da política favorece a ascensão de ‘salvadores da pátria’ e o surgimento de regimes autocráticos”. Para a CNBB, “com o exercício desfigurado e desacreditado da política, vem a tentação de ignorar os políticos e os governantes, permitindo-lhes decidir os destinos do Brasil a seu bel prazer”.
Para a CNBB, a solução é construir uma democracia verdadeiramente participativa. “Dessa forma se poderá superar o fisiologismo político que leva a barganhas sem escrúpulos”. Assim, cobra uma profunda reforma do sistema politico e ações para melhorar o modelo econômico, hoje responsável por submeter o Estado ao mercado. “Intimamente unida à política, a economia globalizada tem sido um verdadeiro suplício para a maioria da população brasileira, uma vez que dá primazia ao mercado, em detrimento da pessoa humana, e ao capital em detrimento do trabalho, quando deveria ser o contrário. Essa economia mata e revela que a raiz da crise é antropológica, por negar a primazia do ser humano sobre o capital”. Mais adiante, acrescenta que “quando é o mercado que governa, o Estado torna-se fraco e acaba submetido a uma perversa lógica financista”. Os bispos reconhecem a necessidade de reformas, desde que obedeçam à lógica do diálogo com toda a sociedade.
A CNBB atualmente lidera, junto com a Ordem dos Advogados do Brasil, um movimento a favor da reforma política. Esse movimento tem sido consultado frequentemente pelo relator dessa reforma no Congresso Nacional, o deputado Vicente Cândido. Algumas das propostas defendidas são a proibição de coligações partidárias nas eleições proporcionais; o sistema eleitoral distrital misto, em que parte das cadeiras no Legislativo é disputada nos distritos, mas a outra parte é determinada pelo voto em legenda; a alternância de gênero – a cada grupo de três candidatos de um determinado sexo, pelo menos um do sexo oposto; a escolha dos candidatos das listas de legenda por convenção partidária com participação dos delegados dos partidos; prévias abertas aos filiados e primárias abertas aos eleitores inscritos.
Leonardo Boff. Para além da dura nota da CNBB, uma manifestação pública mobilizou a atenção da imprensa brasileira no final de abril. Foi a do teólogo Leonardo Boff, que deu uma entrevista para o jornal O Globo com críticas inéditas ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao ex-presidente Lula, um dia depois de vir a público para negar ter feito críticas a Lula em seu site. Boff, que ajudou a fundar o partido e sempre foi próximo de Lula, estava em silêncio desde que as delações de executivos da Odebrecht vieram à tona. O teólogo, apoiador dos governos Lula e Dilma, defendeu que o PT faça uma “séria autocrítica” em sua próxima reunião nacional (que acontecerá em meados de maio) para não correr o risco de “nunca se redimir” por erros cometidos enquanto esteve no comando do país.
“Eu acho que o partido, se na próxima reunião nacional, não fizer uma séria autocrítica que nunca fez antes, nunca vai se redimir. Ele não é mais uma referência global. Foi uma vez, pela bandeira ética, dos mais empobrecidas”, afirmou Boff. “Ou ele refaz esse caminho com muita humildade e diz: ‘fomos mordidos pela mosca do poder’, ou… O PT tem que se refundar. Não é se remendar”, continuou. Para o teólogo, o importante é o partido voltar às suas origens, que são as bases populares. “Em um sentido construtivo, não criticando o Estado, o sistema, mas começando a fazer coisas novas, com temas como ecologia e combate às mudanças climáticas”, propôs.
Sobre Lula, Boff afirmou que o ex-presidente vai receber “duras lições pela frente” e “se dar conta de que um ciclo se encerrou”. Ele “não pode mais se repetir. Eventualmente, se ganhar as eleições em 2018 não pode mais fazer as alianças com os partidos, precisa de um pacto social”.
O teólogo afirmou ainda que o país passa por um momento turbulento, no qual as reformas da previdência e trabalhista – que estão sendo votadas no Congresso Nacional – não serão “suficientes”. “Acho que devemos fazer uma crítica radical ao paradigma de Estado que reinou e se mostrou absolutamente inviável. As classes dominantes sempre fizeram reconciliações entre elas de costas para o povo, inclusive o Lula, com o presidencialismo de coalizão”. Mas, para Boff, essa política se extenuou. “É o momento de fazer uma crítica global do sistema brasileiro. Que tipo de sociedade, que tipo de Estado queremos?”, questionou.
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