Na paróquia Santo Antônio, região oeste de São Paulo, 20 pessoas, a maioria mulheres, se reúnem para rezar e ler um trecho do evangelho de São João. Ao final da leitura, uma delas resume uma recente nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre o atual momento político. A conversa gira em torno das problemáticas que o grupo percebe mais próximas e que tem a ver com o entorno da paróquia. A expressão “opção preferencial pelos pobres” é relembrada muitas vezes. Ao final do encontro, o grupo toma a decisão de ir à favela ao lado promover campanhas de doação de alimentos e para empreender ações para uma melhor condição de saúde para os residentes. Propõem-se também a fazer um censo sobre o problema da moradia no bairro.
Pequenos encontros como esse, que seguem a famosa metodologia ver-julgar-agir, são muito frequentes nas paróquias não só do Brasil, mas de toda a América Latina. São as conhecidas comunidades eclesiais de base (CEB), que surgiram há 70 anos, contaram com o estímulo do Concílio Vaticano II e tiveram seu auge de desenvolvimento nas décadas de 70 e 80. Hoje as CEBs dão a impressão de que perderam espaço. E uma pergunta incômoda, mas frequentemente ouvida no seio das próprias comunidades, é se ainda há espaço para as CEBs na Igreja.
É possível responder que sim. Esta é, ao menos, a resposta que dão os organizadores do IX Encontro Nacional de Comunidades Eclesiais de Base, que será realizado de 17 a 21 de novembro, em Goya, na província de Corrientes. Os organizadores do evento preveem mais de mil pessoas – entre bispos, padres, leigos e consagrados – de toda Argentina e de países vizinhos: Brasil, Uruguai e Paraguai. O centro temático do encontro está resumido no título da conferência: “O rosto libertador de Jesus, transformador da vida”. O objetivo é que as CEBs possam “olhar, revisar e transformar suas práticas concretas para fortalecer o testemunho na realidade atual”, anuncia Julia Basualdo, coordenadora da equipe nacional de Comunidades Eclesiais de Base da Argentina. A programação contempla discussões sobre política social e economia, a relação entre CEBs e Igreja, bem como a utilização em modo apropriado das redes sociais para ajudar na evangelização. São previstos momentos de trocas de experiência e testemunhos. “Vamos partir das perguntas: ‘quais são as opressões das quais temos que nos libertar?’ e ‘quais são as ações libertadoras que fazemos ou deveríamos fazer? ’”, explica Julia, que ao mesmo tempo, reconhece as dificuldades enfrentadas pelas CEBs. “É verdade que atravessam tempos difíceis”, admite. “A principal causa é o modo como vivemos nossa religiosidade, com muitas pessoas se refugiando numa religião mais intimista que no passado. Estamos muito mais individualistas”, sustenta. E isso fez com que muitas pessoas tenham deixado a experiência das CEBs nos últimos anos. Segundo dados recolhidos pelo Instituto de Estudos da Religião do Rio de Janeiro (Iser), no Brasil, que chegou a ter 90 mil núcleos de comunidades eclesiais de base, com aproximadamente 3,5 milhões de católicos participantes, hoje em dia conta com 60 mil CEBs com 1,8 milhão de católicos em suas fileiras.
Quando surgiram, as CEBs eram uma febre de vida, que atraía muitos. Essas comunidades contribuíram com a criação de movimentos sociais, que sobre a base de reflexão desenvolvida no interior das comunidades de base, se organizaram para lutar pela emancipação da família, do trabalho e do bairro. Estas experiências trouxeram a criação de associações de moradores e organizações sindicais, incentivaram a luta pela terra e o fortalecimento do movimento operário. Alguns participantes das comunidades foram perseguidos e mortos pelas ditaduras que impostas em vários países da América Latina. Ao longo do tempo, muitos participantes da vida das CEBs desanimaram diante dos desafios na vida urbana e das contradições humanas presentes na Igreja, nos movimentos populares e, sobretudo, na política. De acordo com o teólogo brasileiro José Marins, estudioso das CEBs, eles “perderam o chão, a motivação e a chama interior que os sustentavam na caminhada”, afirma. As CEBs iniciaram uma parábola descendente e hoje são vistas com indiferença por parte da própria Igreja, afirma Marins. “Algo como que já passou, que era bonito, mas que é de outros tempos”, explica. Papa Francisco tem destacado frequentemente o papel das comunidades eclesiais de base. “Nunca houve um papa que apoiasse as comunidades tão explicitamente quanto uma comunidade sonha em poder realizar”. Mesmo assim, segundo o teólogo, os participantes das CEBs relatam dificuldades em algumas dioceses ou paróquias latino-americanas, pois sentem que suas comunidades não são consideradas no planejamento pastoral. Não são vistas como “célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana”.
“Estas comunidades sobreviverão, não pela aprovação que recebam, mas se realmente souberem corresponder a uma necessidade vital e profunda da realidade. E como as próprias necessidades mudam, também se abrem a novas problemáticas e a novas perspectivas”, argumenta padre Aquino Junior, assessor eclesial das CEBs no Brasil, que considera necessário renovar a experiência das CEBs com capacidade de adaptação aos novos tempos e sem saudades do passado. Na opinião de Aquino Júnior, os novos desafios das CEBs latino-americanas passam por problemas como a questão ecológica, a corrupção e o descrédito na política, bem como a violência, as drogas, as questões de gênero e da sexualidade, a falta de perspectiva na vida e a solidão ocasionada também pelas tecnologias e redes sociais.
O teólogo José Marins nota que a relação entre as CEBs e os neopentecostais é permeada de tensões ou conflitos localizados. Mas o aumento dos evangélicos vem considerado não necessariamente como uma ameaça para as CEBs, mas como um desafio para o seu processo de inserção no mundo religioso pluralista e pela ampliação de sua acolhida ecumênica e inter-religiosa. A convivência cotidiana e o exercício do diálogo nas ações e lutas concretas são em benefício do povo. “O grande desafio de todos os cristãos, católicos ou evangélicos, é promover a dignidade humana e valorizar a vida”, afirma o teólogo, para o qual “o relacionamento entre CEBs e pentecostais parte daqui”. A presença mais ativa do pentecostalismo e a questão indígena no Brasil tem provocado nas CEBs uma reflexão mais incisiva sobre a inculturação.
Mesmo com todos os obstáculos, as CEBs ainda tem lugar na Igreja, assegura dom Geremias Steinmetz, arcebispo de Londrina e referencial das CEBs na região sul do Brasil. “Vivemos novos tempos e novos desafios, dentro dos quais as comunidades podem renascer, e não entrarão em colapso enquanto tiver gente que se sinta interpelada por Jesus de Nazaré”.