“Sou ladrão e vacilão”. Esta é a frase que foi tatuada na testa de um jovem de 17 anos, flagrado por dois homens – um deles tatuador – tentando roubar uma bicicleta na cidade de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, em junho. O caso dividiu as opiniões: alguns manifestaram aprovação pelo ato do tatuador, outros abominaram. Também outra história, um pouco mais antiga, teve um desfecho dramático e clamor popular: três anos atrás uma dona de casa foi linchada até a morte na cidade do Guarujá, litoral de São Paulo, ao ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças que praticava rituais de magia negra. Depois se descobriu que não existia sequestradora nenhuma na região. Tratava-se apenas de boatos espalhados irresponsavelmente nas redes sociais.
Essas são apenas duas de inúmeras histórias que mostram uma triste realidade de todo o Brasil: a da “justiça com as próprias mãos”. A revista Cidade Nova, do Movimento Focolares do Brasil, discutiu esse tema em reportagem de capa de sua edição de agosto, ouvindo especialistas e procurando explicações de por que o Brasil se tornou cenário tão decorrente desses comportamentos.
A reportagem traz um dado alarmante: em 60 anos, um milhão de brasileiros participaram de linchamentos, fazendo do país um dos campeões em todo o mundo da prática da autojustiça. “O número de linchamentos vem crescendo progressivamente e geometricamente no Brasil desde o fim do Estado Novo [período em que o país foi presidido por Getúlio Vargas, de 1937 a 1946]. Minha estimativa é a de que temos hoje um linchamento ou tentativa por dia”, afirma o sociólogo José de Souza Martins, autor do livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil.
Mas por que o linchamento possui tanta força no Brasil? Entre os motivos apontados por especialistas na matéria estão o descrédito da população na polícia e no Judiciário, a polarização social e a insegurança. “O linchamento é um ato violento praticado por um grupo formado espontaneamente e sem organização prévia contra uma determinada pessoa identificada como criminosa. O ato geralmente acontece no espaço público, congregando espectadores e mais participantes”, afirma na reportagem a socióloga Ariadne Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Muitas vezes, o crime vingado rompe tabus sociais, o que estimula um clamor imediato por punição, costumeiramente mais cruel do que a prevista pela Justiça. “A Justiça tem a ideia de proporcionalidade: quanto mais grave o crime, maior a quantidade de anos que o acusado ficará preso. O linchamento suspende isso, e envolve não só homicídio, mas grande grau de sofrimento, totalmente desconectado da punição proporcional”, sublinha Ariadne. A desproporcionalidade punitiva acontece porque linchamentos são motivados menos por um anseio de Justiça e mais por um desejo de vingança. A vítima não tem direito de defesa e os ritos do processo legal são totalmente descartados durante o ato.
A impunidade é fator que favorece o linchamento. Ariadne afirma na revista Cidade Nova que, após analisar 589 ocorrências da prática durante 30 anos na região metropolitana de São Paulo, identificou apenas dois suspeitos que foram a julgamento. “Ninguém se acusa depois de cessada a ação. As pessoas acham injusto alguém responder criminalmente pelo linchamento. Como há uma série de ações que se somam para o desfecho, é difícil determinar responsabilidades individuais”, afirma Ariadne. Outro fator é a naturalização dos linchamentos, que está presente em várias camadas da sociedade, que o percebem como uma “reação” legítima – e, às vezes, até mesmo heroica – da população. “Há certa conivência com a prática”, indica a socióloga Luziana Ramalho Ribeiro, coordenadora do curso de especialização em Segurança Pública e Direitos Humanos na Universidade Federal da Paraíba.
Segundo levantamento da reportagem, os linchadores são pessoas comuns: trabalham, têm família e boa saúde mental. Mas, no calor do momento, decidem seguir os demais. Em grupo, tomam atitudes que talvez não tomassem se estivessem sozinhas. Contrariamente a estes últimos, a vítima de linchamento costuma ter um perfil mais específico. De acordo Ariadne, a maioria é jovem, do sexo masculino e mora em áreas periféricas. E o linchamento costuma acontecer em locais de alta vulnerabilidade social. “Na ausência do Estado, esses bairros concentram uma forte ideia de associativismo para resolver problemas em conjunto, seja na educação, saúde, lazer…”, diz a socióloga. “Com a segurança não é diferente”.
Somam-se a esses fatores a própria noção de direitos humanos, estigmatizada por parte da sociedade brasileira. “Existe um pensamento de que, se os acusados não tiverem direitos, tudo estará resolvido. A eliminação dessas pessoas faz parte do discurso populista ‘bandido bom é bandido morto’”, afirma a socióloga Ariadne Natal. “Mas não existe pesquisa no mundo que garanta que matando pessoas é possível obter mais segurança”, atesta.
Solução. Para disseminar a ideia de direitos igualitários e diminuir a sede de vingança, a educação representa a única alternativa segundo reportagem de Cidade Nova. “Valorizar as diferenças e vê-las como positivas ajuda a repactuar relações éticas e traz a todos uma sensação de pertencimento à sociedade”, diz Irina Bacci, diretora da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, órgão federal que recebe denúncias de violações. Desenvolver o princípio de alteridade, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro, também pode fazer a diferença na educação voltada aos direitos humanos, defende a socióloga Luziana Ribeiro. “Temos que desenvolver o estranhamento do que é familiar – estranhar a moralidade violenta, que incita o outro como inferior e perigoso – e familiarizar-se com o estranho. Não dá para viver numa sociedade em que um mendigo, um ladrão e um estuprador não tenham nada a ver com você”, argumenta. O advogado Martim de Almeida Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, afirma que é imprescindível atuar na causa do problema, diminuindo a desigualdade social com redistribuição de renda, expansão da educação pública de qualidade e implementação de um sistema tributário capaz de permitir tudo isso. “Com prisões e homicídios estamos enxugando gelo. Temos que atuar na raiz dos problemas”, defende. Para ele, o diálogo pode restaurar a constituição de sociabilidade de grupo: “A punição não restitui o corpo social”, conclui.