O BRASIL DAS LUTAS AGRÁRIAS. Recorde de mortes no campo. Mas a “lei do mais forte” não pode prevalecer, denuncia a Igreja.

55 pessoas assassinadas até o mês de julho de 2017
55 pessoas assassinadas até o mês de julho de 2017

No estado de Rondônia, norte do Brasil, os extrativistas Éder Chaves Dias e João Coelho tentam defender a Floresta Amazônica impedindo a passagem de invasores pelo Vale do Jamari. Estão marcados para morrer. Como eles, há centenas de outros na lista do crime organizado que avança sobre as terras da União rumo à Amazônia, maior reserva tropical do planeta. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 57% das ocorrências de conflito no campo acontecem na Amazônia, embora a região só concentre 12% da população brasileira. A situação também é crítica no Cerrado, que registrou 24,1% do total das localidades envolvidas em conflito, mas detém apenas 14,9% da população rural do país. Ao mapear a grilagem em sete estados do norte e centro-oeste do País, a CPT identificou 482 focos ativos de tensão e violência em 143 municípios. Outras regiões do país sofrem do mesmo mal, embora em menor escala. No começo de agosto, na Bahia, oito trabalhadores rurais foram mortos em uma comunidade quilombola – grupo constituído por descendentes de ex-escravos fugitivos.

A verdade é que os conflitos agrários têm recrudescido no Brasil e 2017 promete ser um dos anos mais violentos no campo dos últimos tempos: até agosto, 55 pessoas já perderam a vida em conflitos por terra. Ano passado, 61 mortes foram registradas e foi o maior número em 25 anos. Se este ritmo continuar, o número será seguramente superado.

Segundo a CPT, os assassinatos em conflitos rurais acontecem por terras e madeira. Eles ocorrem geralmente em áreas afastadas, onde não há proteção institucional ou apoio da rede de advogados ligados à questão do campo. As vítimas são, em sua maioria, pequenos agricultores e índios, mas também há fazendeiros, seguranças e pistoleiros. Parte considerável dos assassinatos é cometida por grileiros e grandes proprietários de terra. Os dados apontam que 97% das mortes são de camponeses e indígenas. Além das mortes, a CPT registra um universo de violência composto por tortura, incineração de corpos, violência contra mulheres e indígenas, esquema de venda de licenças, pistolagem paga por planos de manejo e tabelas de execuções. Valdir Aparecido Seza, representante da CPT, afirma que a maioria das denúncias de trabalho escravo e maus-tratos de pequenos agricultores não é formalizada. “De seis casos, apenas um chega até a gente”, estima.

Máfia verde. A destruição da floresta e a pressão implacável dos grileiros sobre as terras do centro-oeste e do norte do Brasil resultaram na criação de territórios com uma dinâmica própria. Na engenharia financeira dos crimes do campo, o comércio da violência estipula tabelas de preços para vidas de homens e árvores, deixando um rastro de prejuízos sociais e ambientais. Da derrubada das árvores ao loteamento ilegal das terras, as digitais da máfia verde são vistas a olho nu. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, a encomenda do assassinato de uma pessoa não difere tanto do valor cobrado por dois ou três metros cúbicos de ipê, que hoje é arrancado da floresta por cerca de 1,5 mil reais (468 dólares). Em Rondônia, um pistoleiro profissional costuma cobrar de 5 mil a 10 mil reais (1.562 a 3.125 dólares) para executar seu serviço, conforme a “importância” daquele que vai perder a vida. Na média, ele costuma ir a campo por bem menos que isso.

Uma hierarquia bem estruturada de agentes criminosos tomou parte da Floresta Amazônica, conta Valdir. Nessa cadeia, o madeireiro é o protagonista. Ele financia as operações, recebe uma encomenda – muitas vezes de metrópoles distantes, como São Paulo – e se movimenta para fazer a entrega. Seu alvo é a colônia das madeiras nobres, o ouro da mata. A busca fica nas mãos dos toreiros, homens enviados ao mato para contabilizar as árvores e calcular o custo de abertura dos carreadores, trilhas abertas a partir de estradas de terra. O investimento é alto. Na fronteira de Rondônia com o estado do Pará uma ação coordenada envolvendo a participação de aproximadamente dez homens custa aproximadamente 240 mil reais (75 mil dólares). Com esse dinheiro, é possível contratar duas máquinas, mateiros, olheiros e abrir um rasgo de cinco a dez quilômetros no meio da mata virgem.

Nas unidades de conservação, a porta de entrada dos criminosos costuma ser os sítios localizados no entorno das florestas protegidas. Valdir Seza, da CPT, diz que em Rondônia, por cerca de 7 mil reais (2.187 dólares) por semana, donos de propriedades abrem suas porteiras para que os madeireiros invadam a mata. A derrubada normalmente é feita por um trator skidder, praticamente um tanque de guerra capaz de passar por cima de tudo o que encontra pela frente. O avanço médio do estrago é de um quilômetro por dia. Sem dificuldades, um skidder pode arrastar sozinho cerca de 150 metros cúbicos de madeira por dia. Em apenas uma semana, 40 hectares vão abaixo, uma área de 40 campos de futebol.

A retirada do material também requer cuidados. Segundo o representante da Comissão Pastoral da Terra, é de noite que as toras costumam ser retiradas,. Antes de a encomenda seguir até os pátios dos madeireiros, batedores com motos são usados para checar se o caminho está livre. As informações são passadas por rádio. Finalmente, para camuflar o material, etiquetas são coladas nos troncos para indicar que aquela madeira teria sido retirada de uma área legal, onde o manejo é permitido. É um golpe fácil, uma vez que não há nenhuma fiscalização sobre as áreas ou a origem real do material. A retirada das espécies mais caras é o bastante para garantir o lucro do madeireiro, pagar as contas dos empregados e das máquinas e financiar as etapas seguintes da devastação. De acordo com Valdir Seza, depois de aberto o rasgo na mata, será a vez do segundo, terceiro e quarto ciclos do roubo da madeira. Nessas etapas, são abertas as esplanadas, canteiros laterais onde os toreiros cortam os tipos de menor valor. A dilapidação chega ao fim com a entrada dos lasqueiros, em busca de material para a construção de cerca. Exaurida toda a madeira de interesse comercial, queima-se o resto. A partir daí, o terreno está pronto para as “correrias pelas terras”, a disputa que definirá o que será pasto e o que será recortado pelos grileiros.

Na Amazônia, a matança de agricultores e índios que se opõem a isso ocorre num território que perdeu, até agora, 20% da cobertura nativa. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que a Amazônia Legal perdeu uma área total de 762 mil km², equivalente a 17 Estados do Rio de Janeiro. Estima-se que 42 bilhões de árvores adultas tenham sido cortadas. Numa conta conservadora feita por técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), o crime organizado movimenta 3 bilhões de reais (937,5 milhões de dólares) por ano com a queda da floresta, considerando-se apenas a etapa em que o tronco deixa a mata. Há ainda a cadeia de beneficiamento da madeira que vai faturar pesado sobre o negócio. É dinheiro mais do que suficiente para irrigar campanhas políticas em municípios e Estados, patrocinar a expansão da grilagem e, se necessário, executar aqueles que se opõem.

Fatores da violência. Segundo especialistas, quatro pontos fazem com que a violência no campo esteja longe de diminuir: a falta de uma reforma agrária consistente, a ausência de uma política pública de regularização de terras, a falta de fiscalização e a incapacidade do Poder Judiciário de punir criminosos no campo.

Para Marco Apolo Santana Leão, advogado que atua na organização Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), “atualmente há o esvaziamento da política da reforma agrária, o esgotamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a falta de recursos”. De acordo com Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República e coordenador de grupo de trabalho sobre terras públicas, “falta uma política perene de regularização das terras. Enquanto não houver isso, os conflitos vão continuar”. A ocupação da Amazônia foi estimulada nos anos 1970, pelo governo militar. Mas, até hoje, grande parte das áreas ocupadas nessa região pertence à União ou aos estados. São terrenos públicos que não foram transferidos oficialmente a um proprietário, o que eleva a tensão na disputa por eles. Segundo Almeida, “a maior parte das mortes são de pessoas lutando pela distribuição da terra em áreas de terra pública griladas no passado por grandes fazendeiros”.

Outro ponto é a dificuldade de dar segurança no campo devido à baixa capacidade dos órgãos públicos em fiscalizar. No Ibama, por exemplo, não há renovação de quadro de pessoal nem infraestrutura para dar conta do trabalho. Em 2008, o órgão federal tinha 1,6 mil funcionários. Hoje são 900 servidores. Há seis helicópteros e 400 carros para cuidar de todo o país. Para realizar uma fiscalização minimamente razoável na Amazônia, seria preciso contratar mais mil servidores. O esvaziamento progressivo causado pela aposentadoria de funcionários também é acelerado pela exoneração de profissionais corruptos. Entre 2014 e 2015, a diretoria do Ibama demitiu 60 empregados por causa de irregularidades e fraudes.

A impunidade nos processos judiciais é o quarto fator que contribui e fortalece para que mais crimes no campo aconteçam. “O pistoleiro que pegou uma morte de encomenda e recebeu dinheiro para assassinar o camponês e não é punido, vai estar no outro dia à procura de uma nova encomenda: é o assalariado da morte”, diz Leão. “Da mesma forma o mandante vai estar resolvendo o problema do conflito na base sempre da bala, porque tem a certeza de que a lei não o vai atingir”. “Quando ocorre o julgamento, continua o advogado, geralmente são punidos pistoleiros e intermediários, dificilmente as investigações chegam aos verdadeiros responsáveis, de quem financia essas mortes”. Dados da CPT corroboram Leão: desde 1985 houve 1.387 assassinatos no campo. Desses, apenas 112 casos foram julgados, com 31 mandantes condenados e 14 absolvidos. Dos executores, apenas 92 foram condenados.

Igreja. Em recente nota divulgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a entidade “cobra urgência de um projeto de reforma agrária e de uma política agrícola que respeite as diversidades regionais e os biomas”, e destaca que não se pode compactuar que se prevaleça a “lei do mais forte”, em clara referência aos madeireiros ilegais e aos grileiros. O arcebispo de Brasília e presidente da CNBB, dom Sérgio da Rocha, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, afirmou que o governo deveria tomar medidas preventivas para que não ocorram novas mortes. Ele argumentou que as autoridades competentes tinham conhecimento das ameaças e que pouco foi feito para proteger essas pessoas. Segundo o bispo, “a CNBB exige apuração imediata, com a consequente punição dos culpados, bem como a proteção a todas as lideranças camponesas ameaçadas de morte”. Questionado se haveria negligência do Estado nessa questão, dom Sérgio da Rocha preferiu dizer que “as medidas só são tomadas quando ocorrem as mortes e a CNBB quer chamar atenção para essa situação dolorosa”.

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